A cortina é o “dia-a-dia”. É um estado mental, não uma realidade objetiva. Deve-se considerar a mente como algo parecido com o radar dos morcegos: de alguma forma conseguimos nos estender para fora e “sentir” a realidade à nossa volta. Na simplicidade do cotidiano, porém, o
homem não precisa “estender-se” para muito longe. E acaba adquirindo o hábito de não fazê-lo.
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O homem precisa desenvolver a consciência positiva. Ele atingiu sua posição atual na escala da evolução graças ao seu poder de voltar a mente para o microscópio e concentrar-se em coisas pequenas. Mas isso o tornou vítima do pequeno e do negativo. A história humana é a história da infantilidade, de brigas bobas por pequenos motivos. Como a dona de casa em Under Milk Wood, que diz “Antes de deixar o sol entrar, cuide que ele limpe os pés”, escravizamo-nos à nossa espantosa capacidade de dedicação às minúcias. Essa mulher obviamente não desfruta do fato de viver. Está presa a seu próprio negativismo. Como todos nós.
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Os mistérios de iniciação constituíam algo diferente. Seu objetivo era elevar a mente acima da banalidade cotidiana, colocando-a numa firme contemplação do caráter milagroso da natureza. O método(da iniciação da religião de Numa) consistia em fazer com que o aspirante se identificasse com a história de Deméter e Coré ou Orfeu, do mesmo modo que um bom pregador pode conseguir que seus fiéis se identifiquem com a paixão de Jesus numa Sexta-feira Santa. A história de Deméter é dramática o bastante para esse fim: sua filha foi raptada e violentada pelo deus do mundo dos mortos, quando colhia rosas, açafrão, jacintos e violetas nos campos.
Durante a longa busca que empreendeu, Deméter fez-se passar por mortal e tornou-se ama no palácio de Ática, em Elêusis.(Ela tencionava fazer do recém-nascido filho do rei um ser imortal, mas foi surpreendida pela rainha no momento em que estava prestes a colocar o menino no fogo, sendo forçada a revelar sua verdadeira identidade.) Sua dor torna estéril a terra, até que Plutão permite que Coré volte à terra uma vez por ano. A lenda explica as estações do ano, e os iniciados tomavam-na ao pé-da-letra. Os mistérios começavam com um jejum ritualístico, seguido de uma vigília que atravessava a noite toda, durante a qual os candidatos à iniciação permaneciam sentados e cobertos por véus, em bancos forrados com pele de carneiro. Na vigília, meditavam sobre o rapto de Coré e a tristeza de Deméter, a longa busca empreendida pela mãe, e assim por diante. Nessa parte oral oral da iniciação, conseguia-se tudo isso por uma representação sagrada e por “sermões”. Em seguida vinham as “provas”, que por certo eram terrificantes e até mesmo verdadeiramente perigosas. Por fim, o clímax da representação: a tristeza de Deméter no templo de Elêusis, os campos áridos sem vegetação, a devolução da filha, com o que ela faz crescer de uma só vez um milharal pronto para a colheita. Nesse ponto da celebração, apresenta-se aos adoradores uma espiga de milho maduro. E, como nos rituais dos xamãs, é provável que o efeito dramático fosse esmagador. Os adoradores olham para fora, para os campos de milho que balançavam com o vento, para os pomares de frutos maduros, e é como revelação. A partir desse ponto, o nome de Deméter ou Coré provoca arrepios no couro cabeludo.(…)
Sempre que a poesia, a música ou uma paisagem me toca profundamente, percebo que vivo num universo de significados que merece de minha parte algo melhor do que a lassidão mesquinha em que vivo habitualmente. E de súbito compreendo a verdadeira fatalidade que representa esse contentamento sem entusiasmo que parece tão inofensivo quanto a trepadeira numa árvore. Ele sistematicamente me rouba a vida, apropriando-se de minha vitalidade e de meu sentido de finalidade. Preciso concentrar-me com clareza nesse imenso significado à minha volta, e me recusar a esquecê-lo; devo rejeitar com desprezo todos os significados menores que procuram atrair para eles minha capacidade de concentração.
Retirado do livro O Oculto, de Colin Wilson.
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